terça-feira, 18 de março de 2008

A morte para a vida fútil...

"Não venho, não vim, nem vou,
Pobre 'doida! Só estou
Na tua imaginação,
Porque foi quem me criou.
Sou simplesmente ilusão.
Ouves? - Não faço segredo,
Sou uma sombra que o medo
Te faz ver por sugestão.
(...)
Deita abaixo esse capricho,
Ingrata! Assim é que pagas
À serva que varre o lixo
Das existências que estragas!
(...)
Transforma-te, se és capaz;
Mas tu não passas daí,
E nunca me vencerás,
Sem que te venças a ti.

Vês como falham os projectos fúteis,
Que, por vaidade, disseste ter feito?
Não têm base, grandezas inúteis,
Caem por si: só eu as aproveito."

Aleixo, A. Este livro que vos deixo. Lisboa

E Deus?

"- Não quero ouvir falar da morte. Não quero! Não quero!
- Mas esse medo, todos o temos...
- Ah, mas vocês têm o que fizeram e o que podem fazer, com o qual se podem defender. Eu não tenho nenhuma defesa, nenhuma..., nem vida, nem fé - nem estruturas racionais..., nada..., nada mais que terror...
- O que é que estás a dizer, homem!
- Que experiência tenho? Nenhuma, a minha colecção de bastões... E agora, com que experiência fico? A morte, nada mais. Não posso pensar noutra coisa. E nela não posso pensar senão com terror, porque sei demasiado bem que todas as teorias filosóficas, todas as satisfações de viver e toda a crença religiosa são falsas, tudo mentiras para afugentar o grande pânico da extinção...
(...)
- Que me propões? Que adquira uma fé religiosa como se compra um par de peúgas? Mas não pode ser assim. Daria qualquer coisa para recuperar a minha fé. Que cómodo seria tê-la! Mas, desgraçadamente, as religiões só me dão vontade de rir. Não compreendes que não são mais do que disfarces do instinto de conservação, modos de se salvaguardar do terror de não existir, formas de engrandecer, imponentemente, mediante mentiras, esta vida que é tão horrivelmente exígua? (...) Não te dás conta de que tudo não é mais do que desordem, injustiça, um jogo de loucura do cosmos? Se há Deus que vele pelo destino dos homens, só pode ser um Deus louco. Que loucura mais completa do que a de ter dotado o homem de consciência para se dar conta da desordem, do terror, mas não os terá dotado de algo para os vencer? (...)
- Crês-te filósofo, mas não és mais do que um histérico.
- Essa é uma maneira de ser louco, de ser verdadeiro.
- (...) Todos, até os mais vulgares, sabemos que a verdade, se existe, não se pode alcançar. Daí nasce tudo. E tu enganas-te porque os homens buscam nomes formosos e queridos com os quais lhes seja possível enganar o desespero. (...)
Vivam as religiões, até a mais absurda e colérica, todas, se com alguma delas formos capazes de escamotear esta dor absurda de que estás a sofrer!"
Donoso, J. (1982) Coronación. Barcelona

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Aos meus Pais...

Ao meu Pai, eterna referência em força, honestidade e solidariedade, valores a partir dos quais procuro pautar as minhas acções. Homem de vida difícil desde a sua infância, e que conheceu, desde cedo, o que era a fome, o trabalho árduo e o afecto ausente dos adultos. Por isso o amo, o admiro e tudo o que faço, faço-o como ele o faria em circunstâncias iguais. Agradeço também por ele a morte da minha Mãe, pois permitiu desde então conhecê-lo e reconhecer facetas de que já me tinha esquecido. Tornou-se ainda mais importante na minha vida e o oxigénio dos meus valores… já não poderei ver as suas lágrimas a caírem-lhe do rosto ao ler estas palavras que revelam os sentimentos que por ele o meu coração alimenta. Papá, para mim não morreu, apenas partiu antes de mim... Amo-o imensamente!
Mamã?!... Bem sei que não poderás responder-me numa linguagem que todos entendam, mas sei que o estás a fazer. O pensamento e o coração estiveram sempre presentes na tua ausência, ainda que direccionados para o presente e para o futuro. Por isso hoje eu agradeço a Deus a tua ausência, porque sem ela eu não teria sido capaz de ser quem hoje sou, e de olhar para ti como hoje eu olho. Perdi a tua presença física, os teus afectos e carícias, a tua voz doce, mas todas estas atitudes estão hoje ainda mais próximas do meu coração, da minha alma e em tudo aquilo que eu faço. Agradeço a Deus a tua ausência e a forma como ela aconteceu, as pessoas que envolveu, pois não estaria hoje aqui, forte… não procuraria com ela eu própria aprender a viver com o morrer, mais ainda quando este morrer é de alguém que amamos e nos parece tirar a vontade de voltar a viver. Hoje vivo intensamente e todos os dias Lhe agradeço por estares comigo desta forma, que permitiu conhecer-te melhor como Mãe e mulher.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Um olhar na arte...

Considerando desde logo os trabalhos desenvolvidos por Philippe Ariès, no campo das ciências sociais e humanas, acentua-se a importância numa análiserelativa ao espaço das crianças no que se refere aos diferentes fenómenos sociais, tais como os rituais fúnebres desde a Idade Média, dando conta das ausências e presenças das mesmas em função da ausência e presença dos adultos (Ariès, 1977).
No campo da Psicologia florescem as preocupações sobre a forma como os adultos devem dar a conhecer o tema da morte às crianças e como os devem preparar para a vivência da morte de alguém afectivamente próximo. E neste campo encontramos alguns autores que elegem como tema das suas análises a criança e a morte, realçando a vivência da perda pelas crianças, os sentimentos que são realçados e como as crianças podem ser ajudadas pelos adultos neste processo de luto. Brenda Mallon sugere modos de intervir junto das crianças diante da perda.
Já no âmbito da medicina psiquiátrica há que destacar Elisabeth Kübler-Ross, que procurou, através dos seus trabalhos, revelar a necessidade de uma educação para a morte, contrariando uma prática corrente do mundo ocidental, a qual passa por sermos discretos na discussão do tema.
Também no campo da literatura infanto-juvenil encontramos preocupações similares, em que as histórias tradicionais parecem absorver a necessidade de transmitir os mistérios da vida, com uma linguagem adequada, de modo a que os pequenos leitores possam, lentamente, familiarizar-se com uma realidade, perante a qual, a qualquer momento, podem deparar-se, como por exemplo a morte do animal de estimação, a morte dos avós.
Importa destacar aqui “O Principezinho“ de Antoine de Saint-Exupéry, ou o “Capuchinho Vermelho“.
No que se refere ao campo cinematográfico é de destacar o filme para crianças “O Rei Leão“, da Walt Disney, ou “A História de Babar“ de Jean de Brunhoff.
Ainda de salientar a importância dada à vivência da morte pelas crianças, através da mais recente produção cinematográfica francófona, e algumas vezes referida neste trabalho, “Ponette”, de Jacques Doillon.

A criança e a morte...

É fulcral atender a uma análise sobre o espaço dado às crianças na vivência da morte, quer do ponto de vista de uma análise sócio-histórica, que procura captar a participação das mesmas em rituais fúnebres, ou na forma como a ausência, repentina e prolongada no tempo, de um familiar próximo é dada a conhecer à criança; quer do ponto de vista de uma análise de sentido, de modo a que a vivência da morte e dos rituais que lhe estão associados se tornem menos dolorosos, e passem a ser entendidos como processos naturais da nossa existência, e a morte se converta num tema naturalmente discutido, sendo assunto recorrente sempre que nos confrontamos com ela. Se, no que se refere aos psicólogos e aos psiquiatras, o tema se apresenta como uma necessidade profissional, estribada na circunstância de estes profissionais terem de se confrontar com estas vivências no quotidiano das suas consultas, à Sociologia da Infância este tema interessará, não como complemento ao processo terapêutico, mas antes no sentido de entender que espaço é que as crianças ocupam quando ousamos pronunciar-nos sobre a morte e a vivência da morte.
Desta forma procura-se dar espaço para que os adultos reconheçam que as crianças possam participar sempre que a morte se torne tema de conversa, muitas vezes restringida ao mundo dos adultos, mas onde as crianças devem estar implicadas, sob pena de aqueles perderem a oportunidade de (re) construírem o seu olhar considerando também olhar e o espaço que as crianças têm na discussão e vivência da morte.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

A efemeridade da nossa existência... (Extracto da obra de Marguerite Yourcenar, a Gherardo Perini “O Tempo, esse grande escultor”, Ed. Difel)

«O Mestre disse-me:
Eis o marco na encruzilhada das estradas a cerca de duas milhas da Porta do Povo. Estamos já tão longe da cidade que aqueles que partem, carregados de memórias, já quase esqueceram Roma quando aqui chegam. De facto, a memória dos homens é semelhante àqueles viajantes fatigados que se desembaraçam de alguma bagagem inútil em cada paragem. Assim chegaram de mãos vazias e nus ao lugar onde vão dormir e serão, no dia do grande despertar, como crianças que nada sabem de ontem, Gherardo, eis o marco.
A poeira da estrada branqueia as poucas árvores que mais parecem, no campo, miliários de Deus; perto, um cipreste de raízes a descoberto faz por viver. Há também uma hospedaria onde as pessoas vão beber. Imagino que as mulheres ricas e vigiadas vêm aqui, aos dias de semana, entregar-se aos seus amantes, e que, ao domingo, as famílias pobres de operários fazem do almoço uma festa. Sabes, Gherardo, se imagino isto é porque é o mesmo em toda a parte.
Não irei mais longe, Gherardo. Não te acompanho mais porque o trabalho urge e eu sou um homem velho. Sou um homem velho, Gherardo. Às vezes, quando te entregas mais à ternura, chegas a chamar-me teu pai. Mas eu não tenho filhos. Nunca encontrei mulher tão bela como as minhas figuras de pedra, mulher que ficasse horas imóvel sem falar, como coisa necessária que não precisa de agir para ser, e nos faz esquecer que o tempo passa porque está sempre presente. Mulher que se deixe olhar sem sorrir nem corar porque compreendeu que a beleza é qualquer coisa de grave. As mulheres de pedra são mais castas que as outras, e mais fiéis, porém, estéreis. Não há fenda por onde se possa introduzir nelas o prazer, a morte, ou a semente de uma criança, e por isso elas são menos frágeis. Por vezes quebram-se e em cada pedaço de mármore fica contida a sua beleza inteira, como Deus que está em todas as coisas, mas nada de estranho entra nelas que dilate o seu coração. Os seres imperfeitos agitam-se e acasalam-se para se completarem, mas as coisas só belas são solitárias como a dor humana. Gherardo, não tenho filhos. Eu bem sei que a maioria dos homens não tem propriamente um filho: têm Tito, ou Caio, ou Pedro, e não é a mesma alegria. Se eu tivesse um filho, ele não se havia de parecer com a imagem que eu dele formara antes de existir. Assim também as estátuas que faço são diferentes daquelas que comecei por sonhar. Mas Deus permite-se ser conscientemente criador.
Se fosses meu filho, Gherardo, eu não te amaria mais, mas não teria que perguntar-me porquê. Toda a minha vida procurei respostas a perguntas que talvez não tenham resposta e perscrutei o mármore como se a verdade se encontrasse no coração das pedras, e espalhei as cores para pintar muralhas como se se tratasse de fixar acordes sobre um enorme silêncio. Tudo se cala, sabes, até a nossa alma – ou então somos nós que não ouvimos.
Assim, tu partes. Na minha idade já não se dá importância a uma separação, mesmo que definitiva. Eu bem sei que os seres que amamos e que nos amam se vão separando insensivelmente de nós a cada momento que passa. É também deste modo que se vão separando de si próprios. Estás sentado sobre essa pedra e julgas-te ainda aí, mas o teu ser, voltado para o futuro, não adere mais ao que foi a tua vida, e a tua ausência já começou. É certo que compreendo que tudo isto é ilusão, como o resto, e que o futuro não existe. Os homens que inventaram o tempo, inventaram por contraste a eternidade, mas a negação do tempo é tão vã como ele próprio. Não há nem passado nem futuro mas apenas uma série de presentes sucessivos, um caminho perpetuamente destruído e continuado onde todos vamos avançando. Estás sentado, Gherardo, mas os teus pés estão assentes no solo com a inquietação de quem experimenta o caminho. Estás vestido com trajes do nosso século, que hão-de parecer feios ou simplesmente estranhos quando o século tiver passado, pois as vestes não são mais que a caricatura do corpo. Vejo-te nu. Tenho o dom de ver através das roupas o irradiar do corpo, que é como os santos vêem as almas, segundo penso. É um suplício quando são feios, mas é um outro suplício quando são belos, dessa beleza frágil que a vida e o tempo atacam por todos os lados e acabarão por tomar-te, mas neste momento és dono dela e tua será na abóbada da igreja onde pintei a tua imagem. Mesmo que um dia o teu espelho te não mostre mais que um retrato deformado onde não ouses reconhecer-te, existirá sempre noutro sítio o reflexo imóvel de ti. E desse modo imobilizarei a tua alma também.
Tu já não me amas. Se consentes em ouvir-me durante uma hora é porque somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar. Ligaste-me e agora desligas-me. Não te censuro, Gherardo. O amor de alguém é um presente tão inesperado e tão pouco merecido que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo. Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces, ao encontro de quem vais e que porventura te esperam: aquele que eles vão conhecer será diferente daquele que eu julguei conhecer e creio amar. Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo. Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas: vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los. Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe, enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela. Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo, assim tu também não és mais para mim do que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver. Gherardo, tu és agora mais belo que tu mesmo.
Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.»

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Um olhar descomprometido sobre a morte

É um imperativo “olhar a morte” de forma natural, e, consequentemente, talvez por pretensiosismo adultocêntrico, procurar inverter a visão que se tem sobre ela, tanto o mais quando a Psicologia sistematicamente nos conduz para os efeitos secundários sentidos por qualquer ser humano, mais ou menos sensível, quando confrontado com a perda de alguém que lhe era particularmente próximo ou simplesmente porque a morte se antecipou.
José Eduardo Rebelo, no seu livro Desatar o nó do luto, considera que a nossa relação com a morte depende de uma perspectiva de desenvolvimento psicológico, pelo que “no início da vida, desconhecemo-la; mais tarde, temos dificuldade em atribuir-lhe um significado; na adolescência, quando queremos vincar a nossa personalidade, desafiamo-la até; enquanto adultos, tentamos ignorá-la; e, na velhice, preparamo-nos para ela.” (2006:29).
No entanto, aquilo que considero fundamental é que não podemos relegar o conhecimento e a aceitação da morte ao estádio da velhice, porque tal se traduziria, certamente, no desenraizar dos indivíduos daquilo que são as suas referências sociais, culturais, bem como as diferentes manifestações e comportamentos que o definem na sua relação com a morte.
Atendendo às motivações pessoais a principal razão que me conduziu a este tema, ou melhor, a esta curiosidade, foi, sem querer tropeçar num “lugar comum”, as sucessivas experiências pessoais que foram despoletadas pela doença e consequente morte precoce da minha Mãe. É sempre precoce quando se trata de alguém com a qual mantínhamos uma proximidade física, afectiva e até axiológica...